O XUKALHO

Blogue para "axukalhar" as memórias...e não só.

sábado, 5 de maio de 2012

NAÇÃO VALENTE E IMORTAL



Agorasol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passauma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramoscoisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meucaro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dáeste solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem,a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos.
Deixamde ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio.Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor JorgeCoelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Umúnico. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o litropelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade. O senhor Rui PedroSoares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade as vezes éhereditário, dúzias deles. Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejamgratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Unssacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale eAzevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outrosanto, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos em nãoentender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, porexemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesseponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito. Um pozinho deconsideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especialternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver
-Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
-Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
-Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por essesPadres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros,coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentesde coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. Ecom a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda nocoração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores,aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.
Asempresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoramcasas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar acapacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimosirrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem dificuldade oburaco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, deuma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar àsua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as correiasdos sapatos.
Valee Azevedo para os Jerónimos, já!
Loureiropara o Panteão já!
JorgeCoelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócratespara a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para aBatalha.
Foracom o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha comque os livros de História nos enganaram.
Queo Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido dasproporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres paratodos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira eCosta: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, osquase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provouo senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, deonde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia noTerreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, era um pateta. Quero outromártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabemcom a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as greves, osprotestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras,olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, maisParaíso. Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa ea peçazita de fruta do jantar. Abaixo o Bem-Estar.
Vocêsfalam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito:onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosasabundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiõesplásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comerlábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres emtenebrosas máscaras de Carnaval.
Paraisso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocêscartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendemlivros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nívelda nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Quequeremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros atomarem conta disto.
Sinceramente,sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes:desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e àfarmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez deprotestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal aindignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas compeitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos,como é nossa obrigação, felizes.

 António Lobo Antunes
in RevistaVisão
05.04.2012